terça-feira, 15 de outubro de 2024

Teto de Vidro

    A gente supõe muito sobre muitas coisas, eu inclusive. Pensamos que sabemos muitas verdades, ignoramos o que não cabe no nosso mundo, postamos, rimos, comentamos e enaltecemos apenas aquilo que favorece o nosso lado. É uma guerra velada. Silenciosa. Mas eu, ah eu, eu sinto tudo. Queria muito aprender a não me importar, levar a vida mais na esportiva, como diria meu pai. Sempre tentei ser coerente - não sou santa, nem tento - também não significa que não errei antes, mas pelo menos eu tento fugir da hipocrisia. Realmente me coloco no lugar do outro, avalio adversários, analiso discursos, busco pontos de vista alternativos, me informo por mais de um lugar, já fui de esquerda - me dói dizer que hoje sou mais de direita, mas sou. Já fui católica, hoje sou evangélica, e nas duas igrejas tem prós e contras. Eu não sou burra, já deu pra saber que não existem verdades absolutas.
    Tudo tem um porque, por quem, é só olhar. Eu vejo nossos próprios erros, nosso histórico de atleta, a ficha que precede. Tenho pavor de defender o indefensável, isso tem custado minha sanidade, mas por fim, não é o que todos estão fazendo?! Defendendo o seu?! Porque ninguém tá vendo? 

    "Confesso que não sei, até hoje não sei por que de repente, sem alterar a voz, comecei a falar com tamanha fúria que não consegui segurar as palavras que vieram com a força de um vômito." 
    
    Eu fiquei brava, agarrei ranço. Parecia pessoal, mas é claro que não era, nunca é. É política minha filha. Amanhã estarão rindo, juntos de novo. Pro lado de cá, quem traiu foi ela. Se aliou com o adversário de quem a criou, passa pano e faz festa, ele diz que não faz acordos, não tem amarras, mas é só olhar cadeiras. Mesma coisa o mais votado, que bonito, bom candidato, mas nas entrelinhas também disse: só presta se tiver do nossa lado. As pessoas sempre perdem, a cidade sempre perde. 

    Ficou doente? Agora de certo deita no asfalto. Maquiagem no último ano sempre funciona, eu não esqueci, eu tava lá, mas o povo... o povo foca na briga, que é o que interessa. Eu fico besta olhando, o marketeiro deve ser uma piá do dianho. 

    Se aqui, querem causar com imposto, palanque na frente e censura, Curitiba mesma coisa, inventam ofensas, fazem alarde, mas se o menino não ganhar, vai respingar, muda até o presidente. Aqui também respinga, mas ninguém vai se entregar. Sabe, sempre sofri muito com essas coisas: verdade, lealdade, manipulação, política, marketing, fé. Era mais fácil quando eu só criticava todos eles, parecia que eu tinha mais respeito. Vesti sempre a camisa, as cores, o jeito do lugar que estou, defendo afinal, é da li que sai meu pão. Eu queria sempre me envolver, ajudar, crescer. Mas ainda assim, nunca bati em ninguém, tenho porta aberta em tudo quanto é canto, enquanto tem muita gente que cospe e vomita no prato que comeu, e não comeu pouco. Queria mesmo era questionar tudo, botar a boca no mundo, ingênua, inocente, perguntar descaradamente porque um alega neutralidade, mas escancara apoio nas entrelinhas?!

    Falam de traição tantos traidores. Chutam cachorro morto e a gente, pulga, se segura como pode. Não que o cachorro se importe, já ficou sem vergonha, parece que faz questão de apanhar. Queria mesmo deixar de ser pulga, talvez ser formiga, trabalhar pelo lar. Não adianta só mudar de cachorro, dá pra ver que o meio de fato nunca vai melhorar. Cada um fala bem de si mesmo, mas entre e veja, tudo é coisa familiar, tem sempre política no meio, ou alguém que vai pagar. 

    Queria mesmo ser radialista, fazer aquela coisa velha e barulhenta funcionar do jeito que vi a professora falar, queria mesmo ir pra rua, falar com o povo, fazer promoção, tocar música boa e sim, informar, levar alegria no ar. Fazer aquela coisa coerente, pelo menos um pouco imparcial. Isenção que fosse... alguém grita aqui dentro: pare de sonhar! Todo mundo tem um lado - de magoados, a ofendidos, derrotados e derrotistas, todo mundo quer ganhar. Tô cansada de pensar, tô cansada de apanhar... mas até eu guardo minhas dores no eco de escutar "credibilidade não se improvisa" e ver quem foi trabalhar.

    " Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só o fervor, mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas." Lygia Fagundes Telles 

 Um dia, quando apresentei o TCC o professor disse: ela é um diamante a ser lapidado. Ninguém nunca mais lapidou mas, por dentro ainda - e sempre - brilha aquela vontade e a certeza: eu posso muito mais do que onde estou! Junto com a dúvida: será?

quarta-feira, 15 de maio de 2024

E-mails

    Hoje rapidamente reencontrei uma menina cheia de juventude, ouvindo The Mamas & Papas, Bobby Mcgee e todas as outras da Janis Joplin, Made In Brazil, trocando e-mail com letras de músicas, ora doce e apaixonada, ora cruel e independente, não a reconheci. Será que era mesmo eu? Será que eu era uma versão de mim tentando se encaixar sem me perder?! Em algum lugar eu queria ser aceita, pertencer àquele grupo - nunca tinha tido um grupo de verdade até então. Então se eles ouviam Beatles, de repente eu gostava, sem nunca ter ouvido antes, mas eu não queria ser uma cópia, mantinha minha originalidade dizendo que era mais Elvis Presley, não era mentira. Se a moda era gostar de Friends, eu gostava, mas por eles, era a primeira vez que eu assistia na casa da Carol e sim, era legal, mas era ainda mais ter aqueles amigos comigo, por isso eu gostava tanto. Se eles compravam camisetas e blusinhas de bandas e da Amy Winehouse, eu também comecei a colecionar. Se tinha show, eu queria ir junto. Não é que eu não gostasse, pelo contrário eu gosto até hoje, mas sinceramente havia uma crise de identidade - HÁ! Talvez eu nunca tenha sabido bem equilibrar quem eu sou verdadeiramente, quem eu represento ser, quem eu gostaria de ser, quem eu acho que as pessoas esperam que eu seja. Isso sempre me levava a me desculpar por tudo.

    Entre narrativas e histórias, tenho 3566 e-mails e muitos precisam ser excluídos, mas daquela época, ficou um que eu sempre volto pra ler. Eu magoei algumas pessoas pelo caminho, era mais metida do que julgava na época, falava muito mais que hoje, escrevia ainda mais, e um dia depois de muitas idas e vindas, um menino me fez perceber (não na época porque eu não tinha noção do quão horrível estava sendo é claro) que apesar de essencialmente eu ser uma boa pessoa, de termos compartilhado muitas conversas profundas no carro, sonhos para o futuro, planos de vida e até sentimentos sinceros e bonitos, eu era ruim, especialmente com ele, que tinha sido tão legal comigo. Eu sei que em algum momento, muito tempo depois eu devo ter reconhecido isso - realmente espero que sim! - mas eu deixei guardado pra lembrar que eu também fiz mal para as pessoas numa juventude distante. Lá se vão quase 20 anos. Os sonhos são bem mais simples agora, com certeza não somos mais os mesmos, mas as músicas nos e-mails e a sensação boa que dava me fez sentir saudades, de mim!

sexta-feira, 8 de março de 2024

A primeira mulher

    É difícil dizer - "feliz dia da mulher" - sendo mulher. Esse dia, essa data, as questões políticas que a envolvem me fazem nunca ter certeza do que dizer. Ser mulher é contraditório demais e minhas referências são complexas. A primeira mulher que eu conheci desafiou a sociedade de uma cidade pequena ao se divorciar, quando ninguém fazia isso. A rua toda ficou escandalizada quando souberam que ela traiu o marido. Ninguém sabia nada da sua história e quais referências ela e a mãe tiveram. Era outra época, outros traumas e abusos. Mas ela foi, se deixou levar na conversa e se encantou pelas possibilidades de outras realidades, que não aquela de economizar em tudo, de se conter, de mulher do lar, dona de casa, mãe de três, que dependia do marido e ia pra igreja. A casa brilhava, os filhos brilhavam e ela se apagava. Deixou as crianças pequenas pra trás e não ouviu ninguém, ninguém a ouviu também. Ela não nega que foi uma decisão ruim, passou a vida se culpando e até se arrepende, mas a primeira mulher que eu conheci era feita de erros, de falhas, sonhos e vontades, uma Maria que a vida me deu como mãe.
    Quando me entendi por gente primeiro rezava e pedia pra ela voltar, chorava baixinho a noite na janela com medo, sozinha. Uma vez ela pulou lá pra nos ver, mas não conseguia voltar, e até a hoje a cortina laranja cheia de cavalos balançando no vento me dá algum alento de que ela iria entrar. Depois mais moça, só sabia admirar, na minha cabeça até hoje a vejo erguendo a vida pelo colarinho, ela era minha heroína, dona de bar, lutando pela gente, não deixava ninguém nos encostar, ela era uma rocha, nunca desistia. Quando tudo tava calmo demais, lá vinha ela trocando um chuveiro, fazendo uma faxina com música alta no rádio em pleno sábado, mudando os móveis de lugar. Quando tudo estava calmo, ela quebrava uma parede e decidia aumentar. Ria, falava alto, mentia pra agradar os homens que iam no bar, servia a todos pra ganhar, jogava como ninguém, sempre teve sorte, se faltava pro almoço ela se virava pro jantar, nunca se achou bonita, não era, mas o carisma, a graça e a impetuosidade eram de abalar. Ela partiu alguns corações. Partiu algumas caras também quando um ou outro se atrevia a não pagar. 
    Parecia que ela não tinha medo de nada. Desafiava, brigava, apanhava. A primeira mulher que eu conheci não deu muita sorte com os homens que escolheu, depois do meu pai, o que eu lembro ainda dói contar: adúlteros, bêbados, velhos. O primeiro batia sem dó, ameaçou matá-la várias vezes, numa dessas atirou na nossa frente, quando me levantei pra defendê-la, me empurrou de volta e eu bati as costas na cama, esse mesmo me fez rezar no meio da sujeira da cozinha, por causa da briga, eu me ajoelhei e pedi pra um dia ser alguém na vida e assim ela nunca mais teria que apanhar, foi o mesmo que na última jogou gasolina ao redor da casa e disse que iria queimar tudo, com a gente dentro. Ela sempre voltava, mas dessa vez conseguiu se livrar. O segundo era um cafajeste, não batia, mas também não a respeitava, por esse, mais novo, sem trabalho, feio, ela bebeu todas, chegava a chorar. Tomou tanto remédio que no mínimo queria se matar, mas talvez fosse só pra provocar. Três crianças cuidaram dela e de um bar cheio de homens, a vimos vomitar no banheiro do posto de saúde depois da lavagem e tudo que eu queria era que ela ficasse bem, a polícia fazia perguntas e de repente, a infância tinha acabado, tinha que ser responsável também. O terceiro ela era apaixonada, mas casado, nesse caso tudo era bom, mas a família incomodava. O último, também era casado, minha irmã saiu de casa no dia que ela chamou o cara pra transar. 
    A gente vivia livre, pra lá e pra cá, mas ao mesmo tempo éramos dela e ela sabia onde nos achar, o que nos dizer e sabe Deus como, conseguiu nos criar. Ser mulher é contraditório demais. Essa mulher que de muitos ângulos parece horrível, também me faz admirá-la ainda e sempre mais. São tantas dores, tantas histórias, tantos erros. Eu quis e quero ser diferente dela em muitas coisas, mas durante boa parte da vida eu também quis ser muito parecida, na sua força, na sua resiliência, na sua coragem. Às vezes no telefone a gente chega a conclusão de que nenhum de nós era pra estar vivo, nem ela, muito antes de nos ter, mas cá estamos... Feliz?! Dia da Mulher. 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Aniversário de dor

Recentemente, um vídeo de um menino falando com paixão um dos mais famosos ensinamentos do Rock Balboa para o Stallone, viralizou. Sabe, aquele em que ele fala que a vida vai bater forte e tal, resiliência:

    "Ninguém vai bater mais forte do que a vida. Não importa como você bate e sim o quanto aguenta apanhar e continuar lutando; o quanto pode suportar e seguir em frente. É assim que se ganha."

Já acreditei tanto nisso. Já preguei tanto isso. Depois de tanta surra, aqui na véspera do aniversário da última vez que fui nocauteada, penso que tem algumas brigas que arrasam com a gente. Ok, você levanta, mas nunca mais é igual. Começa a colecionar cicatrizes no caminho, vai ficando mais cansado, derrotado à cada vitória, chega uma hora que nem entende mais o sentido, o porque de tanta luta e só quer sarar (ou morrer) - (Isso pareceu dramático e forte demais, mas é mais no sentido de desistir, de cessar).

    Na igreja aos domingos a mulher no palco lembra que é preciso desatar nós, desprender das âncoras que nos puxam pra baixo. Na Bíblia tem várias passagens sobre abandonar o passado e fazer tudo novo. A amiga diz que eu preciso colocar no mar do esquecimento. Hoje numa conversa aleatória, alguém perguntou de uma cicatriz da infância e ao me ouvir falar que preferia ter apanhado dos meus à ser mal tratada e humilhada pela madrasta - ainda que do meu ponto de vista eu tenha dito isso sem nenhuma raiva - me falou sobre liberar perdão e que provavelmente essa tortura é minha e que a pessoa nem sabe. Faz sentido. Ainda que pra mim já estivesse de alguma forma tudo acertado. Perdoado e não se fala mais nisso. Tenho o costume de pensar nas razões das pessoas, a fim de sempre justificar as dores que me causaram, sempre tentando salvar aos outros, nem que eu apanhe. Mas tem que perdoar e só. Dizem.

   Nunca aprendi como. A cicatriz fica. A dor fica um tempão. Surra deixa marca. Apanhar da vida assim vai quebrando a gente, pedaço por pedaço, tem horas que nem que junte não cola mais. E aí, você fica mais amargurado e descrente. Desconfia até de Deus (perdão pela blasfêmia Senhor). Não é de propósito, mas a qualquer momento, as marcas se sobressaem em alerta, pra lembrar que tudo pode acontecer, inclusive a derrota, o coração estilhaçado, a decepção, a morte, a falta de fé, a desesperança.

Fica uma luta interna pra não se deixar dominar pela dor mas também pra não esquecê-la e lembrar que DÓI, mesmo que a gente levante depois da queda.