quarta-feira, 15 de maio de 2024

E-mails

    Hoje rapidamente reencontrei uma menina cheia de juventude, ouvindo The Mamas & Papas, Bobby Mcgee e todas as outras da Janis Joplin, Made In Brazil, trocando e-mail com letras de músicas, ora doce e apaixonada, ora cruel e independente, não a reconheci. Será que era mesmo eu? Será que eu era uma versão de mim tentando se encaixar sem me perder?! Em algum lugar eu queria ser aceita, pertencer àquele grupo - nunca tinha tido um grupo de verdade até então. Então se eles ouviam Beatles, de repente eu gostava, sem nunca ter ouvido antes, mas eu não queria ser uma cópia, mantinha minha originalidade dizendo que era mais Elvis Presley, não era mentira. Se a moda era gostar de Friends, eu gostava, mas por eles, era a primeira vez que eu assistia na casa da Carol e sim, era legal, mas era ainda mais ter aqueles amigos comigo, por isso eu gostava tanto. Se eles compravam camisetas e blusinhas de bandas e da Amy Winehouse, eu também comecei a colecionar. Se tinha show, eu queria ir junto. Não é que eu não gostasse, pelo contrário eu gosto até hoje, mas sinceramente havia uma crise de identidade - HÁ! Talvez eu nunca tenha sabido bem equilibrar quem eu sou verdadeiramente, quem eu represento ser, quem eu gostaria de ser, quem eu acho que as pessoas esperam que eu seja. Isso sempre me levava a me desculpar por tudo.

    Entre narrativas e histórias, tenho 3566 e-mails e muitos precisam ser excluídos, mas daquela época, ficou um que eu sempre volto pra ler. Eu magoei algumas pessoas pelo caminho, era mais metida do que julgava na época, falava muito mais que hoje, escrevia ainda mais, e um dia depois de muitas idas e vindas, um menino me fez perceber (não na época porque eu não tinha noção do quão horrível estava sendo é claro) que apesar de essencialmente eu ser uma boa pessoa, de termos compartilhado muitas conversas profundas no carro, sonhos para o futuro, planos de vida e até sentimentos sinceros e bonitos, eu era ruim, especialmente com ele, que tinha sido tão legal comigo. Eu sei que em algum momento, muito tempo depois eu devo ter reconhecido isso - realmente espero que sim! - mas eu deixei guardado pra lembrar que eu também fiz mal para as pessoas numa juventude distante. Lá se vão quase 20 anos. Os sonhos são bem mais simples agora, com certeza não somos mais os mesmos, mas as músicas nos e-mails e a sensação boa que dava me fez sentir saudades, de mim!

sexta-feira, 8 de março de 2024

A primeira mulher

    É difícil dizer - "feliz dia da mulher" - sendo mulher. Esse dia, essa data, as questões políticas que a envolvem me fazem nunca ter certeza do que dizer. Ser mulher é contraditório demais e minhas referências são complexas. A primeira mulher que eu conheci desafiou a sociedade de uma cidade pequena ao se divorciar, quando ninguém fazia isso. A rua toda ficou escandalizada quando souberam que ela traiu o marido. Ninguém sabia nada da sua história e quais referências ela e a mãe tiveram. Era outra época, outros traumas e abusos. Mas ela foi, se deixou levar na conversa e se encantou pelas possibilidades de outras realidades, que não aquela de economizar em tudo, de se conter, de mulher do lar, dona de casa, mãe de três, que dependia do marido e ia pra igreja. A casa brilhava, os filhos brilhavam e ela se apagava. Deixou as crianças pequenas pra trás e não ouviu ninguém, ninguém a ouviu também. Ela não nega que foi uma decisão ruim, passou a vida se culpando e até se arrepende, mas a primeira mulher que eu conheci era feita de erros, de falhas, sonhos e vontades, uma Maria que a vida me deu como mãe.
    Quando me entendi por gente primeiro rezava e pedia pra ela voltar, chorava baixinho a noite na janela com medo, sozinha. Uma vez ela pulou lá pra nos ver, mas não conseguia voltar, e até a hoje a cortina laranja cheia de cavalos balançando no vento me dá algum alento de que ela iria entrar. Depois mais moça, só sabia admirar, na minha cabeça até hoje a vejo erguendo a vida pelo colarinho, ela era minha heroína, dona de bar, lutando pela gente, não deixava ninguém nos encostar, ela era uma rocha, nunca desistia. Quando tudo tava calmo demais, lá vinha ela trocando um chuveiro, fazendo uma faxina com música alta no rádio em pleno sábado, mudando os móveis de lugar. Quando tudo estava calmo, ela quebrava uma parede e decidia aumentar. Ria, falava alto, mentia pra agradar os homens que iam no bar, servia a todos pra ganhar, jogava como ninguém, sempre teve sorte, se faltava pro almoço ela se virava pro jantar, nunca se achou bonita, não era, mas o carisma, a graça e a impetuosidade eram de abalar. Ela partiu alguns corações. Partiu algumas caras também quando um ou outro se atrevia a não pagar. 
    Parecia que ela não tinha medo de nada. Desafiava, brigava, apanhava. A primeira mulher que eu conheci não deu muita sorte com os homens que escolheu, depois do meu pai, o que eu lembro ainda dói contar: adúlteros, bêbados, velhos. O primeiro batia sem dó, ameaçou matá-la várias vezes, numa dessas atirou na nossa frente, quando me levantei pra defendê-la, me empurrou de volta e eu bati as costas na cama, esse mesmo me fez rezar no meio da sujeira da cozinha, por causa da briga, eu me ajoelhei e pedi pra um dia ser alguém na vida e assim ela nunca mais teria que apanhar, foi o mesmo que na última jogou gasolina ao redor da casa e disse que iria queimar tudo, com a gente dentro. Ela sempre voltava, mas dessa vez conseguiu se livrar. O segundo era um cafajeste, não batia, mas também não a respeitava, por esse, mais novo, sem trabalho, feio, ela bebeu todas, chegava a chorar. Tomou tanto remédio que no mínimo queria se matar, mas talvez fosse só pra provocar. Três crianças cuidaram dela e de um bar cheio de homens, a vimos vomitar no banheiro do posto de saúde depois da lavagem e tudo que eu queria era que ela ficasse bem, a polícia fazia perguntas e de repente, a infância tinha acabado, tinha que ser responsável também. O terceiro ela era apaixonada, mas casado, nesse caso tudo era bom, mas a família incomodava. O último, também era casado, minha irmã saiu de casa no dia que ela chamou o cara pra transar. 
    A gente vivia livre, pra lá e pra cá, mas ao mesmo tempo éramos dela e ela sabia onde nos achar, o que nos dizer e sabe Deus como, conseguiu nos criar. Ser mulher é contraditório demais. Essa mulher que de muitos ângulos parece horrível, também me faz admirá-la ainda e sempre mais. São tantas dores, tantas histórias, tantos erros. Eu quis e quero ser diferente dela em muitas coisas, mas durante boa parte da vida eu também quis ser muito parecida, na sua força, na sua resiliência, na sua coragem. Às vezes no telefone a gente chega a conclusão de que nenhum de nós era pra estar vivo, nem ela, muito antes de nos ter, mas cá estamos... Feliz?! Dia da Mulher.