sexta-feira, 8 de março de 2024

A primeira mulher

    É difícil dizer - "feliz dia da mulher" - sendo mulher. Esse dia, essa data, as questões políticas que a envolvem me fazem nunca ter certeza do que dizer. Ser mulher é contraditório demais e minhas referências são complexas. A primeira mulher que eu conheci desafiou a sociedade de uma cidade pequena ao se divorciar, quando ninguém fazia isso. A rua toda ficou escandalizada quando souberam que ela traiu o marido. Ninguém sabia nada da sua história e quais referências ela e a mãe tiveram. Era outra época, outros traumas e abusos. Mas ela foi, se deixou levar na conversa e se encantou pelas possibilidades de outras realidades, que não aquela de economizar em tudo, de se conter, de mulher do lar, dona de casa, mãe de três, que dependia do marido e ia pra igreja. A casa brilhava, os filhos brilhavam e ela se apagava. Deixou as crianças pequenas pra trás e não ouviu ninguém, ninguém a ouviu também. Ela não nega que foi uma decisão ruim, passou a vida se culpando e até se arrepende, mas a primeira mulher que eu conheci era feita de erros, de falhas, sonhos e vontades, uma Maria que a vida me deu como mãe.
    Quando me entendi por gente primeiro rezava e pedia pra ela voltar, chorava baixinho a noite na janela com medo, sozinha. Uma vez ela pulou lá pra nos ver, mas não conseguia voltar, e até a hoje a cortina laranja cheia de cavalos balançando no vento me dá algum alento de que ela iria entrar. Depois mais moça, só sabia admirar, na minha cabeça até hoje a vejo erguendo a vida pelo colarinho, ela era minha heroína, dona de bar, lutando pela gente, não deixava ninguém nos encostar, ela era uma rocha, nunca desistia. Quando tudo tava calmo demais, lá vinha ela trocando um chuveiro, fazendo uma faxina com música alta no rádio em pleno sábado, mudando os móveis de lugar. Quando tudo estava calmo, ela quebrava uma parede e decidia aumentar. Ria, falava alto, mentia pra agradar os homens que iam no bar, servia a todos pra ganhar, jogava como ninguém, sempre teve sorte, se faltava pro almoço ela se virava pro jantar, nunca se achou bonita, não era, mas o carisma, a graça e a impetuosidade eram de abalar. Ela partiu alguns corações. Partiu algumas caras também quando um ou outro se atrevia a não pagar. 
    Parecia que ela não tinha medo de nada. Desafiava, brigava, apanhava. A primeira mulher que eu conheci não deu muita sorte com os homens que escolheu, depois do meu pai, o que eu lembro ainda dói contar: adúlteros, bêbados, velhos. O primeiro batia sem dó, ameaçou matá-la várias vezes, numa dessas atirou na nossa frente, quando me levantei pra defendê-la, me empurrou de volta e eu bati as costas na cama, esse mesmo me fez rezar no meio da sujeira da cozinha, por causa da briga, eu me ajoelhei e pedi pra um dia ser alguém na vida e assim ela nunca mais teria que apanhar, foi o mesmo que na última jogou gasolina ao redor da casa e disse que iria queimar tudo, com a gente dentro. Ela sempre voltava, mas dessa vez conseguiu se livrar. O segundo era um cafajeste, não batia, mas também não a respeitava, por esse, mais novo, sem trabalho, feio, ela bebeu todas, chegava a chorar. Tomou tanto remédio que no mínimo queria se matar, mas talvez fosse só pra provocar. Três crianças cuidaram dela e de um bar cheio de homens, a vimos vomitar no banheiro do posto de saúde depois da lavagem e tudo que eu queria era que ela ficasse bem, a polícia fazia perguntas e de repente, a infância tinha acabado, tinha que ser responsável também. O terceiro ela era apaixonada, mas casado, nesse caso tudo era bom, mas a família incomodava. O último, também era casado, minha irmã saiu de casa no dia que ela chamou o cara pra transar. 
    A gente vivia livre, pra lá e pra cá, mas ao mesmo tempo éramos dela e ela sabia onde nos achar, o que nos dizer e sabe Deus como, conseguiu nos criar. Ser mulher é contraditório demais. Essa mulher que de muitos ângulos parece horrível, também me faz admirá-la ainda e sempre mais. São tantas dores, tantas histórias, tantos erros. Eu quis e quero ser diferente dela em muitas coisas, mas durante boa parte da vida eu também quis ser muito parecida, na sua força, na sua resiliência, na sua coragem. Às vezes no telefone a gente chega a conclusão de que nenhum de nós era pra estar vivo, nem ela, muito antes de nos ter, mas cá estamos... Feliz?! Dia da Mulher. 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Aniversário de dor

Recentemente, um vídeo de um menino falando com paixão um dos mais famosos ensinamentos do Rock Balboa para o Stallone, viralizou. Sabe, aquele em que ele fala que a vida vai bater forte e tal, resiliência:

    "Ninguém vai bater mais forte do que a vida. Não importa como você bate e sim o quanto aguenta apanhar e continuar lutando; o quanto pode suportar e seguir em frente. É assim que se ganha."

Já acreditei tanto nisso. Já preguei tanto isso. Depois de tanta surra, aqui na véspera do aniversário da última vez que fui nocauteada, penso que tem algumas brigas que arrasam com a gente. Ok, você levanta, mas nunca mais é igual. Começa a colecionar cicatrizes no caminho, vai ficando mais cansado, derrotado à cada vitória, chega uma hora que nem entende mais o sentido, o porque de tanta luta e só quer sarar (ou morrer) - (Isso pareceu dramático e forte demais, mas é mais no sentido de desistir, de cessar).

    Na igreja aos domingos a mulher no palco lembra que é preciso desatar nós, desprender das âncoras que nos puxam pra baixo. Na Bíblia tem várias passagens sobre abandonar o passado e fazer tudo novo. A amiga diz que eu preciso colocar no mar do esquecimento. Hoje numa conversa aleatória, alguém perguntou de uma cicatriz da infância e ao me ouvir falar que preferia ter apanhado dos meus à ser mal tratada e humilhada pela madrasta - ainda que do meu ponto de vista eu tenha dito isso sem nenhuma raiva - me falou sobre liberar perdão e que provavelmente essa tortura é minha e que a pessoa nem sabe. Faz sentido. Ainda que pra mim já estivesse de alguma forma tudo acertado. Perdoado e não se fala mais nisso. Tenho o costume de pensar nas razões das pessoas, a fim de sempre justificar as dores que me causaram, sempre tentando salvar aos outros, nem que eu apanhe. Mas tem que perdoar e só. Dizem.

   Nunca aprendi como. A cicatriz fica. A dor fica um tempão. Surra deixa marca. Apanhar da vida assim vai quebrando a gente, pedaço por pedaço, tem horas que nem que junte não cola mais. E aí, você fica mais amargurado e descrente. Desconfia até de Deus (perdão pela blasfêmia Senhor). Não é de propósito, mas a qualquer momento, as marcas se sobressaem em alerta, pra lembrar que tudo pode acontecer, inclusive a derrota, o coração estilhaçado, a decepção, a morte, a falta de fé, a desesperança.

Fica uma luta interna pra não se deixar dominar pela dor mas também pra não esquecê-la e lembrar que DÓI, mesmo que a gente levante depois da queda.